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“Perdoou, logo existo”

anateixeirapsicolo

Ao longo das últimas décadas, o ramo da psicologia tem vindo a apostar o seu olhar num construto tão belo, mas ao mesmo tempo tão complexo: o perdão. De facto, o seu estudo poderá ainda ser classificado como relativamente recente, pois debruçamo-nos perante um conceito com raízes profundamente religiosas, onde só a partir da década de sessenta investigadores da área das ciências sociais atreveram-se a considerar o perdão como um objeto de estudo.


Facilmente podemos compreender a importância do seu estudo se atendermos que o ser humano é um ser genuinamente relacional, necessitando constantemente da interação com os seus semelhantes para o alcance de um desenvolvimento pleno, pelo que no decorrer dessas interações é perfeitamente possível e natural o surgimento de ofensas. Já os investigadores postularam que, paradoxalmente, são aqueles que mais amamos que mais provavelmente nos ofendem e ofendemos. Ademais, o perdão tem sido amplamente reconhecimento como um elemento capaz de promover o bem-estar físico e psicológico dos indivíduos, aumentando o sentimento de felicidade perante a vida.


Etimologicamente, o verbo perdoar tem origem no verbo perdonare do latim vulgar, cujos significados remetem para os conceitos de dar e conceder, elevando assim o perdão ao patamar de uma dádiva altruísta, cuja essência se pauta pelo dar sem pretender nada em troca. Refletindo numa definição um pouco mais complexa, a investigação alerta para a importância de se considerar a natureza multidimensional deste construto, concetualizando o perdão como um conjunto de mudanças motivacionais que levam à inibição de respostas negativas, como a vingança e a vontade de nos distanciarmos de quem nos ofendeu (dimensão negativa), e ao aumento de respostas positivas, como ser benevolente perante o ofensor (dimensão positiva). Mas devemos então esquecer que este estado motivacional negativo existe? Claro que não.


O perdão é um processo que leva o seu tempo, contemplando diversas etapas e variando indiscutivelmente de pessoa para pessoa, pelo que experienciar emoções negativas e desejar até a vingança face a quem nos ofendeu é uma etapa perfeitamente natural deste processo inicial. Como tal, é possível e necessário que o primeiro momento deste processo se paute pela aceitação do acontecimento ofensivo e o experienciar das emoções advindas. O importante é analisar o que acontece a partir daqui. Estará a pessoa motivada e capaz de atribuir um novo significado ao acontecimento ofensivo que lhe permita levar a cabo a decisão de perdoar? E que motivações levam os indivíduos a querer perdoar? Embora o perdão não seja sinónimo de reconciliação, aumentando apenas a probabilidade de esta ocorrer, uma das principais motivações reside precisamente no o desejo de “reparar” o relacionamento, além do amor e carinho ainda nutrido pelo ofensor, assim como o próprio bem-estar pessoal.


Na prática clínica em psicologia, assiste-se cada vez mais a uma emergência crescente de intervenções que promovem o perdão, quer no âmbito da terapia individual como da terapia familiar e de casal, o que denota uma vez mais os seus contornos positivos. Mas como referido anteriormente, perdoar não é uma tarefa fácil e, sendo um processo, é necessário ter em conta a existência de determinadas variáveis ou fatores que possam facilitar o dificultar este processo: variáveis relacionadas com a forma como a pessoa ofendida pensa e sente em relação à ofensa, isto é, fatores sociocognitivos, como a empatia face ao outro; variáveis relacionadas com a natureza da ofensa, como por exemplo, a severidade da mesma, pelo que quanto maior esta for, maior a dificuldade em perdoar; variáveis do próprio relacionamento, como os níveis de compromisso e intimidade, pelo que quanto maiores estes forem, mais facilmente o ofendido perdoará; fatores relacionados com a própria personalidade, onde, por exemplo, níveis superiores de neuroticismo têm repercussões negativas; e, também, fatores relacionados com o ajustamento psicológico, pelo que a titulo de exemplo, níveis superiores de stress influenciam negativamente a capacidade de perdoar.

Como tal, torna-se fundamental a consideração de todos os possíveis fatores intervenientes no processo de perdoar, assim como cabe ao papel do terapeuta a mediação dos mesmos e ter sempre em consideração que cada indivíduo possui as suas especificidades, uma história e percurso de vida singular que certamente influencia a tomada de decisão, que pauta os seus significados e a opção de querer ou não perdoar. Ademais, ofendido e ofensor possuem perspetivas distintas face ao acontecimento ofensivo; comunicar “perdoei-te” pode significar o início do processo de perdão para o ofendido, mas pode ser compreendido pelo ofensor como o cessar absoluto do acontecimento. Assim, a compreensão do processo de perdão não deve ser exclusivamente uniliteral, considerando unicamente a perspetiva do ofendido, mas sim o todo do relacionamento.


Numa linha semelhante, é de extrema relevância explorar e perceber como a pessoa significa o perdão. De facto, é bastante comum a confusão deste conceito com outros sinónimos e o encarar do perdão como “dar a parte fraca”, pelo que educar face ao mesmo revela-se fundamental, sublinhando-se a natureza altruísta e corajosa do mesmo.

Em suma, perdoar torna a convivência humana harmoniosa, promove sociedades mais pacíficas e contribui para um estilo de vida mais positivo. Possivelmente, um sinal de um perdão bem-sucedido será a sensação de paz sentida por quem o experimenta. Tornando-se impossível conceber a vida humana sem a presença do perdão, vamos ter a ousadia de o experimentar; e continuar a apostar na investigação do mesmo, descobrindo e usufruindo de todos os seus contornos positivos.

 
 
 

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